Do rosto ela não lembra. Consegue citar todas as características: alto, cabelos pretos e muito lisos, pelo clara, amarelada, sempre de bigodes e, às vezes, com a barba por fazer (nunca em ocasiões formais, porque era deveras educado. Por isso também não usava calças de moletom e nem regatas e achava o fim o homem que as usasse em público.).
Muito inteligente e com uma cultura incomparável às pessoas ao seu redor. Para ela era um gigante em todas as áreas. Mas do rosto ela não lembra. Por mais que se esforce. Não consegue.
Quando ela ainda era pequena ele fazia um programa de rádio aos sábados pela manhã. Muita notícia e boa música (nativista, sua grande paixão.). Ela ficava ao lado do rádio, imaginando como ele e os companheiros entraram lá dentro. Ele mandava 'chasques' a ela. Ela gostava.
Ele tocava violão e escrevia poesias. ela se orgulhava dele.
Um dia ele foi para a cidade com o propósito de fazer uma cirurgia no braço para curar alguma dor que sentia. Ela lembra dele voltando para casa depois da cirurgia. Ela não sabe detalhes, mas a verdade é que o braço dele nunca mais se movimentou. Um braço seco do ombro ao pulso e uma mão que tentava, muitas vezes em vão, fazer alguma coisa.
Nessa época ele passou a ficar a maior parte do tempo em casa, pois não servia mais para o serviço da roça. Um inválido. Ele fez de tudo para voltar a ter os movimentos. Não obteve sucesso.
Ele ensinou ela a fazer pão. Ela tinha 6 anos. Colocava a bacia sobre uma cadeira e ia obedecendo as ordens dele: tanto de farinha, tanto de açúcar, sal. óleo, fermento.... Agora amassa. Deixa crescer. Amassa de novo. Põe na forma. Põe pra assar. Ela aprendeu.
Ele sempre teve orgulho dela. E ela dele. Ela lia os versos dele e achava aquilo tudo muito lindo. Ela via ele tocar violão e cantar e se sentia feliz. Ela adorava dormir nos braços dele. Ah, como ela lembra disso. Das noites frias ao redor do fogo. Ela deitava em seu colo, entrava no seu casaco e ele chegava a abotoá-lo, para que ela ficasse bem protegida. Ela ficava ali, pequenininha, bem enrolada para se alojar naquele colo quentinho. Ela não queria crescer para nunca deixar de caber ali.
Ele sonhava com o futuro dela. Queria vê-la formada. Uma mulher não pode depender de ninguém, ele dizia. Ele a apresentava para pessoas importantes como "a minha filhinha". Um dia alguns desses homens importantes prometeram a eles que dariam uma bolsa de estudos quando ela crescesse. Ela cresceu e eles nunca cumpriram tal promessa (ironicamente, anos mais tarde ela teve acesso a tal bolsa, através de um homem que ele pouco conhecera e que nunca havia lhes prometido nada. Coisas da vida.).
É incrível como ela consegue lembrar até do cheiro dele, mas não lembra do rosto...
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