quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A Lebrinha

Lebrinha nasceu no final dos anos 1970, no interior do interior do RS. Uma menina do pampa. Do pampa pobre, diga-se.
Lebrinha recebeu esse apelido por ser muito magra e ter longas pernas e cabelos levemente escuros como o pelo de uma lebre. Ah, sim! E longas orelhas. Uma fofa!
Toda a família da lebrinha era composta por agricultores. Pequenos agricultores. Agricultura familiar, sabem como? Mas mesmo em meio a enxadas e foices, lebrinha sempre teve acesso a livros. TV não tinha. mas tinha livros. Muitos. E ela lia. Lia. Lia e viajava...
Lia e tornava a ler os mesmos livros, porque não existia biblioteca lá no rincão onde ela cresceu. Mas isso não era problema. As meninas da Cecília e a Clarisse do Érico pareciam diferentes a cada nova leitura. Lebrinha era feliz.
Tá! Lebrinha teve problemas. Uns grandes, outros enormes. Uns deixaram marcas, outros cicatrizes. Uns causaram tristeza. Outros, raiva. Desses ela nunca fala, porque raiva é o pior sentimento que alguém pode ter. E ela não gosta. Então se cala.
Aos 5 anos os pais da Lebrinha a ensinaram a ler. Mas não com livros. Sabem como? Com latas e pacotes de alimentos. Sim! "ó-leo-de-so-ja-cor-co-va-do", "fa-ri-nha-de-tri-go-es-pe-ci-al-ve-ne-ran-da". Com todas as pausas e acentuações. E ela gostava. Gostava tanto, que a sua brincadeira preferida quando estava com os primos era adivinhar onde estava escrito determinada palavra. Pra isso eles usavam as muitas latas reutilizadas como floreiras por suas tias e sua avó.
Aos 6 anos ela foi para a escola. Longe de casa. Seu pai tirava da boca para pagar o ônibus. Nenhuma outra criança usava esse meio de transporte, mas, também, nenhuma outra criança morava tão longe da escola e não tinha irmão para acompanhar.
O problema era quando chovia! O ônibus não passava. A solução era ir a pé. Mais de 5 km. No barro. Descalça, claro!
O pai, muito amoroso, a acompanhava até perto da escola e depois voltava para casa. Quando isso acontecia ela ficava na casa de umas senhoras muito boas até que a chuva estiasse e ela pudesse  voltar para casa. Às vezes levava uma semana inteira. Ela tinha saudades do pai e da mãe, mas sabia que o estudo era muito importante. Engolia o choro e dormia.
Quando ela estava com 8 anos, seu pai ficou muito doente (ele já estava doente há muito tempo, apenas que nessa época ela entendeu o que se passava) e precisou ir se tratar na cidade. Não na sede do seu município, mas em outra cidade. Longe de casa. Sua mãe também foi e ela ficou um tempo com os avós, durante as férias, mas quando o ano letivo iniciou, seus pais decidiram que ela deveria ir com eles. Mas para onde?
Eles moravam numa pensão mantida pelo hospital e sua mãe trabalhava como doméstica na casa do médico que tratava seu pai. Ali não havia lugar para ela. Então a colocaram em um orfanato de onde ela saía aos sábados para passar um dia e meio com os pais na tal pensão. Num quanto de 6 metros quadrados. O pai, doente, dormia na cama de solteiro enquanto ela e a mãe dividiam um colchonete no chão. Os outros móveis do quarto praticamente não existiam. Uma mesinha de cabeceira e uma mala de roupas. E assim foi por alguns meses.
pela primeira vez ela tinha amigas (e inimigas.). Dividia o quarto com outras meninas e ia para a escola em grupo. Ela estava feliz na maior parte do tempo, mas nos domingos, na hora de voltar para o orfanato, ela sentia aquele nó na garganta. Vontade de pedir pra ficar. Dizer que não queria ir. Se esconder, como ela fazia na casa dos avós, aos cinco anos, para não voltar para casa com o pai. Mas não. Ela sabia, mais uma vez, o que era mais importante.
Numa noite, na véspera do seu aniversário de 9 anos (ou na madrugada do dia? será que já passara da meia noite? ela não lembra.) as tias do orfanato foram acordá-la. Sua mãe estava na portaria. Disseram que veio buscá-la para ver o pai. Ela estranhou, claro, porque naquela mesma semana ela já estivera no hospital, o que não era costume. Desconfiada, se vestiu e desceu as escadas em forma de caracol.
A mãe, sempre muito fria, falou algum coisa. Ela não lembra. Só lembra de ter perguntado se depois iria voltar. Depois do quê, perguntou  mãe. Depois de ver o pai- foi o que ela respondeu - e teve como resposta apenas que "agora não tem mais pai."
Silêncio. Não chorou e nem sabe porque. Talvez para não dar mostras de fraqueza. Sim. Deve ter sido isso. Foram para a pensão onde as coisas já estavam arrumadas e depois para o hospital, onde um tio já as esperava no carro da funerária.
Viajaram a noite. Em silêncio. Numa veraneio. Eles todos, os vivos, na frente, enquanto o pai, morto, ficava sozinho, no caixão, logo ali atrás.
Lembra que choveu. Chegaram ainda escuro na sua casa no sítio.
Tinha gente esperando.
Seu pai era muito amado pela família e amigos.
Se se pode chamar uma cerimônia fúnebre de 'bonita', então ela diria que sim, essa foi muito bonita. E na tarde do dia do seu aniversário de 9 anos ela estava no cemitério vendo o pai ser enterrado para sempre no chão de terra embarrado. A chuva caía. E choveu ainda por muitos dias. Sua mãe, sempre tão dinâmica, perdera um pouco da força e do sentido da vida e por isso ficaram, as duas, naquela casa, sem saber o que fazer. Chovia e elas esperavam. O quê? Não sabiam. Isso durou dias? Semanas? Meses? Ela não lembra. Não tem certeza. Sabe apenas que pouco conversaram. Até que um dia sua mãe decidiu ir para a cidade arrumar emprego e a colocou novamente em um orfanato. Outro. Mantido por freiras.
Era ano de copa do mundo. Isso ela lembra bem porque elas assistiam os jogos na sala de tv. Mas só os jogos do Brasil. Mais nada.
Outra escola. Outras amigas. E nos fins de semana a mãe a buscava e iam para a casa dos tios. Casa delas, não tinham mais.
Durante a semana a mãe morava no emprego. Ela já se acostumara com aquela vida. Aquele nó na garganta todo domingo a tarde. Ela se conformara. Mas a mãe não. E assim, um dia, voltaram para a casa no sítio e ela voltou para a escolinha rural que tanto gostava. Escola pequena. Uma única professora. Ela gostava assim. Nunca se adequara ao barulho e movimentação da cidade. E assim o ano de 1986 findou.

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