sexta-feira, 9 de maio de 2014

Pânico



Quando a Lebrinha ainda era uma menina pequena e muito magra ela foi acompanhar uma de suas tias, irmã de sua mãe, em visita a um casal de conhecidos. Era um dia chuvoso e, muito provavelmente, no inverno, pois era na época das férias escolares que ela passava alguns dias na casa dos avós maternos. A menina estava ansiosa pela visita, pois, como viviam no campo, raramente ocorria alguma novidade por aquelas bandas e visitar a casa de alguém e ainda ficar para o almoço era motivo de muita expectativa.

Ao chegarem à casa foram recebidas pela moradora, uma senhora já idosa, de origem alemã (o fato de a família da mãe da Lebrinha viver em uma colônia sempre a deixava curiosa por causa dos costumes diferentes que os colonos traziam de sua origens alemãs e italianas.) que já preparava o almoço. Teria a tão famosa sopa de leite. Ou algo assim.

As adultas conversavam, o tempo passava e a hora do almoço se aproximava. A expectativa era grande.

Num dado momento chega à casa o esposo da moradora, um senhor muito magro e alto. Sério. Também alemão. Este senhor, muito gentil e educado, que devia estar vindo do galpão ou roça, pois não era costume homens ficarem dentro de casa, mesmo em dias de chuva, entrou na sala, onde a mesa já estava posta, e foi cumprimentá-las. Nesse momento a menina desandou no choro. Choro compulsivo! Tremor! Medo! Pavor!

Se agarrou à tia e aos gritos, pedindo para ir embora.

A tia, bastante envergonhada, chamava sua atenção. Então! que feio uma menina grande fazendo birra! Onde já se viu?!

A anfitriã, também bastante nervosa, concluiu que se tratava de um ataque de lombrigas. Ânimos acalmados, os adultos fizeram a refeição como lhes foi possível e logo em seguida ambas, tia e sobrinha, tomaram o caminho de casa.

História contada. Menina devidamente punida.Vergonha para os pais. Não se tocou mais no assunto. O que ninguém imaginava era o motivo de tamanho pavor. O senhor que chegara à casa não tinha uma das mãos. Pessoas com alguma deficiência sempre lhe causaram medo, a ponto de ela sentir cheiro de sangue, como se aquele membro tivesse sido arrancado recentemente. Como se a ferida ainda estivesse aberta e sangrando. Um trauma superado na idade adulta, porém o pânico, este monstro pavoroso, continua a rondar. De várias formas.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

Lebrinha Curiosa


No ano de 1987 a Lebrinha estava de volta ao orfanato do início do ano anterior. Era uma vida totalmente diferente daquela a qual ela fora acostumada desde pequena, mas nem por isso ela detestava. Não. Ela até gostava de algumas coisas. Como a sala de Tv e brinquedos - que ela adorava - e as amigas, claro!

Todos os dias elas iam para a escola, logo cedo, acompanhadas dos meninos que moravam do outro lado da rua, no orfanato destinado a eles. Era um bando muito alegre. Seguiam caminho às gargalhadas. Felizes, apesar de tudo.

No meio do caminho entre o internato e a escola ficava o presídio da cidade. Um prédio bem feio, escuro, assustador. Para os meninos a passagem pelo presídio era uma verdadeira farra. Eles se orgulhavam em contar nos dedos todos os seus parentes que viviam lá e sinalizavam para alguém que, porventura, aparecesse em alguma janela, que mais tarde voltariam trazendo serras e pés de cabra. Um bando de pirralhos de 10/12 anos dando fuga a presidiários. Épico!

Uma tarde a Lebrinha precisou voltar a escola, certamente para alguma pesquisa na biblioteca ou trabalho em grupo. Ela não lembra exatamente. Como sempre fora uma menina muito bem comportada e estudiosa, as tias permitiram que ela fosse sozinha. E lá foi ela. Mas por outro caminho. Ela não queria passar em frente ao prédio assustador. Foi pela rua de trás. Os fundos do presídio.

A parte de trás do presídio era cercada com uma tela grossa, mas por onde era totalmente possível passar algum objeto de tamanho pequeno. Mas isso ela ainda não sabia, pois não era seu costume andar por ali. A rua estava deserta. Era logo após o almoço e o sol era forte. Ela lembra bem.

Quando se aproximou da tal cerca escutou alguém chamando sua atenção. Atônita, olhou para o lado e viu um homem parado, muito sério, em pé junto a cerca, pelo lado de dentro. (Um preso?!). Ele a chamou e ela, já sem medo, se aproximou. O homem então lhe pediu, muito educadamente, porém direto, que entregasse um bilhete em uma casa próxima e passou o papelzinho dobrado através da tela.

Num ato de obediência ela pegou o papel e virou as costas. Não teve coragem de abrir o bilhete. Imagine. Correspondência alheia! Caminhou alguns metros e parou em frente a casa. Bateu palmas e uma moça veio atender. Ela, sem muitas palavras, entregou o bilhete e saiu ligeiro. Agora sim, como o coração aos pulos.

Nunca teve coragem de contar a alguém tal fato, mas anos depois ainda morre de curiosidade de saber o que estava escrito naquele pedacinho de papel. Teria ela ajudado amantes se corresponderem? E se o bilhete fosse uma ameaça a moça e a sua família? De um bandido pode-se esperar tudo, era o que diziam.
Seria a lebrinha cúmplice de algum crime? De uma fuga da prisão, talvez...

Nunca saberemos. Ela se odeia por ser tão curiosa, mas se odeia mais ainda por não ter tido coragem de ler o bilhete.




terça-feira, 22 de outubro de 2013

TV

Enquanto era criança, bem pequena, a Lebrinha não conhecia tv (nem danoninho, mas isso fica para outro post.). Aquela caixa mágica, emitindo sons e mostrando a imagem de pessoas em movimento (!!!) só chegou ao seu conhecimento lá pelos 7 anos. E ela ficou fascinada com aquilo tudo. 
Como era fantástico! Se ela já morria de curiosidade para saber como os homenzinhos entravam no rádio, imaginem o furor que a modernidade daquele aparelho lhe causou... 
E tinha todo um ritual. Não era como hoje, só se sentar no sofá e pegar o controle. Não! A tv era coisa da cidade, de quando, muito raramente, ia à casa dos tios. A tv hipnotizava. Que mundo perfeito! 
Um dos tios tinha uma TV pequena e sem cor, mas na casa do outro, ah! Tinha um aparelho grande! E colorido! 
Dessa época ficaram em sua mente algumas cenas que nunca se apagaram. Parecem ter vida própria e ocupam boa parte do espaço reservado às lembranças. 
Coisas bobas, vocês diriam, mas não pra ela. Para a Lebrinha são coisas de extrema importância, como a cena de um  menino com o seu cavalo num  filme antigo (o primeiro que ela teria visto?) onde ele puxava o cavalo e dizia "ela é uma dama." O cavalo, uma égua, estava adornado com flores. Tal cena nunca lhe saiu da cabeça. Por anos tentou lembrar que filme era aquele, e chegou a pensar que tudo não passava de uma alucinação. 
Outra lembrança que insiste em se acomodar em sua mente é um pedacinho de um programa que passou à noite, apresentado por dois moços lindos e afinados. Chico e Caetano era o nome deles. Muito tempo mais tarde ela veia a saber que aquele programa era parte de uma série. Soube também quem eram os tais moços, já não tão moços assim e acabou gostando deles. Mas o programa, aquele pedacinho que ela viu na tv sem cores na casa do tio numa noite enquanto os adultos arrumavam a cama no chão da sala para ela e a mãe, ah, isso ela não esquece. 
E o comercial de todynho? Um rio de achocolatado! Que coisa mais maravilhosa. Que vontade de estar lá. 
Foram tantas  as lembranças boas que a tv deixou em sua mente que mais tarde ela veio a se tornar uma tvmaníaca. Assistia a tudo o que pudesse. Durante anos esse foi o seu maior vício, a sua melhor companhia.
A primeira tv que entrou na casa dela foi adquirida através de um consórcio assim que ala conseguiu o primeiro emprego fixo e remunerado. Meses pagando e esperando o tão desejado e sonhado aparelho. Vinte polegadas, colorida, mas sem controle remoto, pra ficar mais em conta. Ela já tinha 15 anos!

Hoje ela tem na sala de casa uma 40 polegadas e paga tv por assinatura, mas quase não assiste, e no quarto tem uma 42 ligada ao aparelho de DVD. Noite passada ela viu um filme antes de dormir, mas a magia nunca mais foi a mesma...

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

Ele

Do rosto ela não lembra. Consegue citar todas as características: alto, cabelos pretos e muito lisos, pelo clara, amarelada, sempre de bigodes e, às vezes, com a barba por fazer (nunca em ocasiões formais, porque era deveras educado. Por isso também não usava calças de moletom e nem regatas e achava o fim o homem que as usasse em público.).
Muito inteligente e com uma cultura incomparável às pessoas ao seu redor. Para ela era um gigante em todas as áreas. Mas do rosto ela não lembra. Por mais que se esforce. Não consegue.
Quando ela ainda era pequena ele fazia um programa de rádio aos sábados pela manhã. Muita notícia e boa música (nativista, sua grande paixão.). Ela ficava ao lado do rádio, imaginando como ele e os companheiros entraram lá dentro. Ele mandava 'chasques' a ela. Ela gostava.
Ele tocava violão e escrevia poesias. ela se orgulhava dele.
Um dia ele foi para a cidade com o propósito de fazer uma cirurgia no braço para curar alguma dor que sentia. Ela lembra dele voltando para casa depois da cirurgia. Ela não sabe detalhes, mas a verdade é que o braço dele nunca mais se movimentou. Um braço seco do ombro ao pulso e uma mão que tentava, muitas vezes em vão, fazer alguma coisa.
Nessa época ele passou a ficar a maior parte do tempo em casa, pois não servia mais para o serviço da roça. Um inválido. Ele fez de tudo para voltar a ter os movimentos. Não obteve sucesso.
 Ele ensinou ela a fazer pão. Ela tinha 6 anos. Colocava a bacia sobre uma cadeira e ia obedecendo as ordens dele: tanto de farinha, tanto de açúcar, sal. óleo, fermento.... Agora amassa. Deixa crescer. Amassa de novo. Põe na forma. Põe pra assar. Ela aprendeu.
Ele sempre teve orgulho dela. E ela dele. Ela lia os versos dele e achava aquilo tudo muito lindo. Ela via ele tocar violão e cantar e se sentia feliz. Ela adorava dormir nos braços dele. Ah, como ela lembra disso. Das noites frias ao redor do fogo. Ela deitava em seu colo, entrava no seu casaco e ele chegava a abotoá-lo, para que ela ficasse bem protegida. Ela ficava ali, pequenininha, bem enrolada para se alojar naquele colo quentinho. Ela não queria crescer para nunca deixar de caber ali.
Ele sonhava com o futuro dela. Queria vê-la formada. Uma mulher não pode depender de ninguém, ele dizia. Ele a apresentava para pessoas importantes como "a minha filhinha". Um dia alguns desses homens importantes prometeram a eles que dariam uma bolsa de estudos quando ela crescesse. Ela cresceu e eles nunca cumpriram tal promessa (ironicamente, anos mais tarde ela teve acesso a tal bolsa, através de um homem que ele pouco conhecera e que nunca havia lhes prometido nada. Coisas da vida.).
É incrível como ela consegue lembrar até do cheiro dele, mas não lembra do rosto...

quarta-feira, 2 de outubro de 2013

A Lebrinha

Lebrinha nasceu no final dos anos 1970, no interior do interior do RS. Uma menina do pampa. Do pampa pobre, diga-se.
Lebrinha recebeu esse apelido por ser muito magra e ter longas pernas e cabelos levemente escuros como o pelo de uma lebre. Ah, sim! E longas orelhas. Uma fofa!
Toda a família da lebrinha era composta por agricultores. Pequenos agricultores. Agricultura familiar, sabem como? Mas mesmo em meio a enxadas e foices, lebrinha sempre teve acesso a livros. TV não tinha. mas tinha livros. Muitos. E ela lia. Lia. Lia e viajava...
Lia e tornava a ler os mesmos livros, porque não existia biblioteca lá no rincão onde ela cresceu. Mas isso não era problema. As meninas da Cecília e a Clarisse do Érico pareciam diferentes a cada nova leitura. Lebrinha era feliz.
Tá! Lebrinha teve problemas. Uns grandes, outros enormes. Uns deixaram marcas, outros cicatrizes. Uns causaram tristeza. Outros, raiva. Desses ela nunca fala, porque raiva é o pior sentimento que alguém pode ter. E ela não gosta. Então se cala.
Aos 5 anos os pais da Lebrinha a ensinaram a ler. Mas não com livros. Sabem como? Com latas e pacotes de alimentos. Sim! "ó-leo-de-so-ja-cor-co-va-do", "fa-ri-nha-de-tri-go-es-pe-ci-al-ve-ne-ran-da". Com todas as pausas e acentuações. E ela gostava. Gostava tanto, que a sua brincadeira preferida quando estava com os primos era adivinhar onde estava escrito determinada palavra. Pra isso eles usavam as muitas latas reutilizadas como floreiras por suas tias e sua avó.
Aos 6 anos ela foi para a escola. Longe de casa. Seu pai tirava da boca para pagar o ônibus. Nenhuma outra criança usava esse meio de transporte, mas, também, nenhuma outra criança morava tão longe da escola e não tinha irmão para acompanhar.
O problema era quando chovia! O ônibus não passava. A solução era ir a pé. Mais de 5 km. No barro. Descalça, claro!
O pai, muito amoroso, a acompanhava até perto da escola e depois voltava para casa. Quando isso acontecia ela ficava na casa de umas senhoras muito boas até que a chuva estiasse e ela pudesse  voltar para casa. Às vezes levava uma semana inteira. Ela tinha saudades do pai e da mãe, mas sabia que o estudo era muito importante. Engolia o choro e dormia.
Quando ela estava com 8 anos, seu pai ficou muito doente (ele já estava doente há muito tempo, apenas que nessa época ela entendeu o que se passava) e precisou ir se tratar na cidade. Não na sede do seu município, mas em outra cidade. Longe de casa. Sua mãe também foi e ela ficou um tempo com os avós, durante as férias, mas quando o ano letivo iniciou, seus pais decidiram que ela deveria ir com eles. Mas para onde?
Eles moravam numa pensão mantida pelo hospital e sua mãe trabalhava como doméstica na casa do médico que tratava seu pai. Ali não havia lugar para ela. Então a colocaram em um orfanato de onde ela saía aos sábados para passar um dia e meio com os pais na tal pensão. Num quanto de 6 metros quadrados. O pai, doente, dormia na cama de solteiro enquanto ela e a mãe dividiam um colchonete no chão. Os outros móveis do quarto praticamente não existiam. Uma mesinha de cabeceira e uma mala de roupas. E assim foi por alguns meses.
pela primeira vez ela tinha amigas (e inimigas.). Dividia o quarto com outras meninas e ia para a escola em grupo. Ela estava feliz na maior parte do tempo, mas nos domingos, na hora de voltar para o orfanato, ela sentia aquele nó na garganta. Vontade de pedir pra ficar. Dizer que não queria ir. Se esconder, como ela fazia na casa dos avós, aos cinco anos, para não voltar para casa com o pai. Mas não. Ela sabia, mais uma vez, o que era mais importante.
Numa noite, na véspera do seu aniversário de 9 anos (ou na madrugada do dia? será que já passara da meia noite? ela não lembra.) as tias do orfanato foram acordá-la. Sua mãe estava na portaria. Disseram que veio buscá-la para ver o pai. Ela estranhou, claro, porque naquela mesma semana ela já estivera no hospital, o que não era costume. Desconfiada, se vestiu e desceu as escadas em forma de caracol.
A mãe, sempre muito fria, falou algum coisa. Ela não lembra. Só lembra de ter perguntado se depois iria voltar. Depois do quê, perguntou  mãe. Depois de ver o pai- foi o que ela respondeu - e teve como resposta apenas que "agora não tem mais pai."
Silêncio. Não chorou e nem sabe porque. Talvez para não dar mostras de fraqueza. Sim. Deve ter sido isso. Foram para a pensão onde as coisas já estavam arrumadas e depois para o hospital, onde um tio já as esperava no carro da funerária.
Viajaram a noite. Em silêncio. Numa veraneio. Eles todos, os vivos, na frente, enquanto o pai, morto, ficava sozinho, no caixão, logo ali atrás.
Lembra que choveu. Chegaram ainda escuro na sua casa no sítio.
Tinha gente esperando.
Seu pai era muito amado pela família e amigos.
Se se pode chamar uma cerimônia fúnebre de 'bonita', então ela diria que sim, essa foi muito bonita. E na tarde do dia do seu aniversário de 9 anos ela estava no cemitério vendo o pai ser enterrado para sempre no chão de terra embarrado. A chuva caía. E choveu ainda por muitos dias. Sua mãe, sempre tão dinâmica, perdera um pouco da força e do sentido da vida e por isso ficaram, as duas, naquela casa, sem saber o que fazer. Chovia e elas esperavam. O quê? Não sabiam. Isso durou dias? Semanas? Meses? Ela não lembra. Não tem certeza. Sabe apenas que pouco conversaram. Até que um dia sua mãe decidiu ir para a cidade arrumar emprego e a colocou novamente em um orfanato. Outro. Mantido por freiras.
Era ano de copa do mundo. Isso ela lembra bem porque elas assistiam os jogos na sala de tv. Mas só os jogos do Brasil. Mais nada.
Outra escola. Outras amigas. E nos fins de semana a mãe a buscava e iam para a casa dos tios. Casa delas, não tinham mais.
Durante a semana a mãe morava no emprego. Ela já se acostumara com aquela vida. Aquele nó na garganta todo domingo a tarde. Ela se conformara. Mas a mãe não. E assim, um dia, voltaram para a casa no sítio e ela voltou para a escolinha rural que tanto gostava. Escola pequena. Uma única professora. Ela gostava assim. Nunca se adequara ao barulho e movimentação da cidade. E assim o ano de 1986 findou.